Guto




Eduardo estava ansioso para chegar em casa, havia passado o final do expediente de trabalho com alguns colegas, que debatiam orgulhosamente os desejos aspirados por seus filhos em relação ao futuro profissional dos pequeninos. Otávio dizia que seu primogênito, de apenas 5 anos, já queria ser médico. Jair dizia que sua Margarida repetia que seria modelo , e o caçula do Marcos sonhava em ser astronauta. Oras, Eduardo não sabia o que o filho queria ser, nunca havia lhe passado pela cabeça fazer aquela pergunta óbvia na vida de qualquer criança: o que você vai ser quando crescer? Quando os amigos lhe perguntaram quais as aspirações de seu pequenino Guto, Eduardo desconversou, por não saber, mas na manhã seguinte, logo cedo, no primeiro intervalo do café, iria estufar o peito para dizer o que o filho queria ser. Aliás, já imaginava quais seriam as respostas prováveis de seu menino: Um jogador de futebol, um cantor, um jornalista... Quem sabe, presidente? Guto era muito novo, era verdade, mas com toda certeza, encheria de orgulho o pai, e deixaria todos no escritório com inveja. Presidente era muito melhor que astronauta, pensava consigo mesmo.
                Mal chegara em seu apartamento, e a empregada saia, sem nem mesmo dar-lhe um cumprimento descente, mas avisando que Cláudia, a esposa de Eduardo, já havia saído para a faculdade. Mesmo a porta tendo sido fechada um tanto bruscamente pela empregada, Eduardo não se importou muito, só queria saber onde estava o filho e qual seria a resposta dele. Chegando à porta do quarto do filho, Eduardo encontrou o mesmo de costas, entretido em alguma aventura imaginária com seus bonecos de super-heróis. Assim que escutou a voz do pai lhe chamando, o menino virou-se com seus enormes olhos negros e correu para abraçar Eduardo, que logo aproveitou o momento para puxar o assunto com o filho.
                — E aí filhão, está brincando, né? — Perguntou, e obteve um balançar positivo de cabeça do menino, que logo depois deu uma explicação incompreensível sobre o tema de sua brincadeira. Logo em seguida, Eduardo colocou o filho no colo, e continuou — Sabe filhão, papai que saber de uma coisa, o que que você quer ser quando for grande, assim do tamanho do papai?
Instantaneamente, e sem olhar nos olhos de Eduardo, o pequeno Guto respondeu:
— Midigo.
— Médico? — Tentou confirmar, ou melhor, compreender o vocabulário do filho de 5 anos.
— Não pai, midigo. — Respondeu novamente.
—Midigo? Mendigo, é isso? — Perguntou incrédulo com a compreensão da palavra.
—É, midigo.
O coração de Eduardo sofrera uma leve disritmia, não poderia aceitar aquilo, o filho, futuro presidente querendo ser mendigo. Só poderia ser brincadeira, ou talvez, o menino, focado nos brinquedos em suas mãos, não entendera a pergunta. Sendo assim, Eduardo esvaziou as mãos do filho e o virou pra ele, de modo que Guto olhasse diretamente para seus olhos.
— Não Guto, fala pro papai o que que você, é você, tá? O que você que ser quando crescer e ficar assim, bonito igual o papai?
Novamente, sem hesitar, o menino proferiu a mesma palavra, “midigo”.
— Mas por que você quer ser mendigo, Guto?
— Pus quê, midigo é bom. — Respondeu a criança.
— Não filho, mendigo não é bom, mendigo é sujo, é feio. Mora na rua, você vai querer morar na rua, vai? — O menino balançou a cabeça negativamente — Então, mendigo mora na rua. O que você quer ser quando crescer Guto, você quer se cuidar dos doentes? Quer ajudar as pessoas? — Agora Guto balançava a cabeça positivamente, o que encheu Eduardo de esperanças — Então, quem ajuda as pessoas é o médico, você quer ser médico? — O pai balançava a cabeça positivamente enquanto fazia a nova pergunta, e num reflexo de mimica, o pequenino o imitava. Então, cheio de esperanças em ouvir dizer que o filho queria ser médico, Eduardo perguntou novamente o que Guto gostaria de ser quando crescesse, e para espanto do empresário, o filho desviou o olhar e proferiu: ‘midigo’.
Que humilhação, pensava Eduardo, tantas profissões no mundo, tantas crianças desejando serem médicos, atletas, famosos e seu único filho desejava, mesmo que inocentemente, ser um mendigo, um vagabundo da sociedade, um marginalizado. Que absurdo! O que os colegas do trabalho iriam dizer e pensar? Ele, pai de um aspirante à mendigo.
— Mas por que mendigo, Guto? Médico é muito melhor, você pode ajudar as pessoas.
— Midigo é bom papai, midigo juda as pessoas.
— Não, mendigo não ajuda as pessoas filho, mendigo é feio. Fala pro papai que você quer ser médico, fala?
Guto olhou pro pai com as sobrancelhas  franzidas, a bochecha inchada e uma boca em formado de bico, e naquela braveza infantil, respondeu emburrando e cruzando os bracinhos, como se sua resposta fosse definitiva.
— Não, quelo ser midigo.
Eduardo deixou o filho no quarto, brincando e com seu sonho de se tornar um mendigo, e foi tomar um banho, buscando engolir aquela opção de Guto. A água lhe caiam no rosto com o peso de uma decepção infinita, chegou até mesmo em cogitar propor ter outro filho com sua esposa, para que o próximo lhe dissesse que gostaria de ser médico, jogador de futebol, presidente talvez. Olhando a água escorrendo pelo ralo, pensava no que diria no trabalho. “Ele é muito pequeno, não sabe o que quer”, “Médico, disse que quer ser médico o meu menino, veja só!”, eram algumas das respostas que ele ensaiava.
Não demorou muito para que o cansaço da segunda-feira caísse sobre Eduardo e Guto, e indo colocar o filho na cama, o pai pensou consigo que, talvez agora, que Guto estava mais dormindo do que acordado, ele responderia o que realmente queria ser quando crescesse. Após chamar o nome do filho três vezes em sua orelhinha e vendo que a criança abrira os olhos morteiramente, Eduardo perguntou novamente ao filho, e mesmo naquele estado sonolento a criança disse: midigo, midigo é bom.
Frustrado, Eduardo foi dormir, e foi despertado horas depois pela esposa, que havia chegado da faculdade e deitava-se na cama para dormir. Vendo que acordara o marido, ela se desculpou. Embora o assunto do futuro do filho o atormentasse, Eduardo resignou-se apenas a perguntar à Cláudia como havia sido o seu dia. A esposa então lhe respondeu que havia sido tranquilo, com apenas um fato curioso: À tarde, enquanto passeava com Guto pelo bairro, Cláudia tivera um mal estar que a fez desmaiar, sem ninguém acompanhando os dois, e em um momento em que a rua estava praticamente deserta, Cláudia disse ter se lembrado apenas de ter acordado sendo atendida por uma equipe de enfermeiros de uma ambulância, enquanto o filho estava no colo de um homem maltrapilho, um mendigo. Segundo relatos, o homem a viu desmaiar, e correu para prestar ajuda, sem ter como chamar os médicos, usou do celular de Cláudia e cuidou dela e de Guto enquanto o socorro não vinha. Quando Cláudia estava em condições de agradecer, tentou recompensar com algum dinheiro o homem, mas ele não aceitou. Assim, ela o levou até a casa deles e pediu que a emprega servisse um prato de comida ao mendigo, sem mencionar à moça, o que havia ocorrido. A doméstica não agradou muito da ideia de servir um pedinte, o que lhe deixou de mal humor pelo resto do dia. Após comer um pouco, o homem sumiu, e nem mesmo na rua onde tudo havia acontecido, ele não estava mais.
Eduardo se mostrou, de início, alarmado com o estado de saúde de Cláudia, mas a esposa o tranquilizou, e disse estar tudo bem, que havia sido apenas uma queda de pressão, talvez pelo forte calor daquele dia.  Depois disso, Eduardo se deitou no escuro, e algumas lágrimas, misturadas a um sorriso incomum e silencioso surgiram em seu rosto.
Pela manhã, um de seus amigos o perguntou:
—E aí, descobriu qual o sonho do seu filho? O que que ele quer ser quando crescer?
— Descobri rapaz, ele quer ser bom.

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