O Último Tango de Florencia
Em algum lugar, há
tempos muito idos, houve uma mulher, uma belíssima mulher argentina, de cabelos
muito escuros, feições fortes, pernas torneadas e uma das melhores dançarinas
de tango que já se apresentaram no agora extinto Bulles Rouges, uma casa de
espetáculos onde eram servidos os melhores vinhos franceses do final da década
de sessenta. Alvo de olhares masculinos maliciosos e lascivos, Florencia, assim
ela se chamava, não era uma dama fácil de se conquistar, aliás, só houve um
homem em todo o mundo, que fez o coração da bela “chica latina” se dividir
entre sua paixão pelo tango e um amor por qualquer outra coisa.
Carlos
Marinho, um ideologista, homem de fortes convicções e detentor do dom da
palavra. Realizava seus discursos com tamanho ardor, que chegava a arrancar
lágrimas de alguns ouvintes. Pregava liberdade, igualdade e fraternidade,
clamava pelo mundo novo e em meio a tantas batalhas cotidianas em sua guerra
particular, encontrava nos braços de Florencia o seu porto seguro, o seu
recanto de paz. Era invejado por muitos por possuir a mulher que se entregou
apenas a um.
Carlos
e Florencia eram vítimas deliciosas de um amor arrebatador, quando ela subia no
palco e realizava suas apresentações, não haviam olhos mais admirados, mais
brilhantes, mais apaixonados que os dele. Miravam suas pernas, seu decote,
cruzavam a cintura, se perdiam em cada movimento do tango perfeito, desejavam
os lábios e acabavam por repousar no olhar daquela mulher. Sim, não havia
sensualidade maior em Florencia do que o seu olhar, dois universos castanhos
explodindo sentimentos e iluminando como um sol particular seu mais fiel e
apaixonado expectador. Aliás, aquele homem de ombros largos, pele morena e
olhos negros era um exímio dançarino de tango, havia aprendido com alguém, em
certa estadia em terras platinas. E sem que ninguém soubesse, apenas aqueles
dois amantes, todas as noites, no quarto de Florencia, ela, Carlos e a voz de
Gardel dividiam um pequeno espaço na sala, de alguns poucos metros quadrados, e
se entregavam a um bailar de pernas, de movimentos, onde os corpos pareciam se
tornar apenas um.
Todas
as noites eram iguais, ela se apresentava no Bulles Rouges, enquanto ele a
observava e tomava seu vinho chileno, tinto e seco. Ela seduzia a todos, mas só
ele subiria com ela para seus aposentos, onde El Morocho Del Abasto os
aguardava com mais uma música binária e compassos de dois por quatro, o coração
dele e dela se encontrariam em um abraço, enquanto suas pernas se entrelaçariam
em passos e contratempos. A música seria o tango, mas o ritmo seria o amor. Às
vezes mais rápido, às vezes mais devagar, às vezes mais ardente, outras mais
carinhosa, o sentimento era sempre o mesmo, mas suas variações acompanhavam os
acordes da canção da noite, do ritmo do coração, dos lábios, do encontro das
mãos, das pernas... A paixão entre dois mundos tão distintos e tão iguais.
Florencia
lia cartas de tarô, enquanto Carlos não acreditava nas armações do destino. Ela
dizia que tudo tinha um porque escrito em linhas cósmicas, nas estrelas, nos
astros e nas cartas, nas linhas das mãos e na vontade dos deuses. Ele
acreditava nos acasos apenas, no que era científico e no que poderia ser
provado por equações, encontros para ele eram meras ocasiões onde ponteiros de
relógios diferentes se encontraram sem intenção alguma, apenas por que por uma
lógica eles iriam se encontrar. Ela era mística, ele era razão.
Certa
noite de lua cheia, quando o casal subia as escadas à meia luz, arrancando
beijos escorados nas paredes, ambos manchados nos lábios pelo batom carmim da
dançarina, a figura de um homem em meio a fumaça de um cigarro interrompeu
aquele particular de amor. Florencia, com olhos sérios e espantados, jamais
havia visto aquele ser, Carlos por sua vez, proferiu um nome:
—
Augusto!
Era
esse o nome daquele homem estranho, barbudo, sem sorriso nos lábios e sem luz
no olhar, o que de augusto haveria nele afinal, senão apenas o nome que
recebera na pia batismal, se é que aquele era mesmo o nome dele. Carlos
conhecia muita gente, muitos apenas com um primeiro nome, sem sobrenomes ou
referências a alguma família que os tenha concebido. Filhos de chocadeira, era
assim que Florencia às vezes se referia aos amigos de seu amado, mas ele apenas
sorria, balançava a cabeça e respondia.
—
No que eu faço, às vezes a ignorância é uma benção minha querida, uma benção.
E
agora aquele homem estava ali, o tal Augusto, os observando do alto da escada,
e aos olhos da dançarina de tango, nada de benção parecia vir dali, apenas
sombras. Naquela noite Gardel permaneceu silencioso e Florencia sozinha, Carlos
seguira com o tal Augusto e ela teve de se contentar com a companhia de suas
cartas de tarô. Se há algo que floreia e se mistura e enriquece os mistérios do
amor, esse algo é o misticismo, e naqueles pequenos cartões de bordas
arredondadas e um pouco amareladas pelo tempo e pelo uso, a mulher buscava
respostas para o destino de seu amor, de seu amado e de si própria. Mas assim
como Gardel, o destino se mostrava mudo em suas revelações.
A
porta se abriu, e como um vento do nordeste, Carlos entrou, olhou rapidamente o
interior daquele apartamento, até encontrar quem procurava sentada à mesa,
caminhou sem dizer palavras, a levantou da cadeira e beijou-a, com um beijo que
significava muitas coisas, desde uma declaração de amor até a confissão de que
deveria partir. Só houve aquele beijo e um diálogo curto sobre a necessidade
para a causa, tempos sombrios, pedidos de aguardo e promessas de regresso, e
tão rápida como foi aberta, a porta também foi fechada, deixando para trás uma
mulher vestida de saudade, amargura e lágrimas.
Quinze
luas cheias iguais à daquela fatídica noite voltaram a brilhar no céu,
testemunhando assim como suas versões nova, minguante e crescente todas as
cartas de tarô dispostas na mesa, todas as noites, sendo questionadas por
Florencia se seu amado estava vivo e se regressaria. Todos os discos de tango
haviam sido guardados, esperando a oportunidade de embalarem a dança daqueles
dois. Quando a décima sexta lua, em todo seu esplendor, iluminou o céu do lado
de fora do Bulles Rouges, e com o peito arrebatado de saudades, Florencia se
permitiu seduzir por um rapazote, um homem de quem ela disse não querer saber o
nome e que chamaria por Carlos somente. No fim da noite, ela e seu novo affaire
subiram as escadas e, retirando a poeira de seus discos, novamente a voz de
Gardel foi ouvida por através daquelas finas paredes. A mulher se entregou ao
tango nos braços daquele falso Carlos, e enquanto dançava, fechava seus olhos e
através dele enxergava naquele desconhecido o seu homem, com quem bailou todas
as faixas sem desprender-lhe um beijo.
Depois
daquela noite, foram inúmeros os falsos Carlos que passaram por sua sala, que
lhe abraçaram a cintura e que dançaram com ela à meia luz daquela sala e seus
velhos móveis. Os falsos Carlos conseguiram dela apenas o novo nome e a dança
de olhos fechados, nada mais, nada menos. Não houve espaços em seus braços e
nem em seus lábios, muito menos em sua cama, eles apenas preenchiam o vazio da
dança, oferecendo, sem saber, seus corpos para a encarnação do grande amor da
dançarina.
As
cartas continuavam a não responder e os falsos Carlos a lhe entreter, mas nada
preenchia o vazio de seu coração. E à tarde, quando ela era apenas uma
senhorita sozinha na praça, dando milho ao pombos, acompanhavam-na a amargura
da possibilidade de nunca mais bailar um tango nos braços que melhor a
abraçavam e do coração que compassava ao seu. E embora a dor fosse tamanha,
suas lágrimas eram substituídas pela fragilidade das brasas de um cigarro
breve.
Segundos
se passavam, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, e a beleza jovial de
Florencia dava espaço a rugas e linhas de expressão, a menos agilidade com
braços, mãos e pernas. O tempo cobrava seu preço e a solidão misturava-se a
saudade, enquanto os discos empoeiravam-se mediante a redução do número de
falsos Carlos que a acompanhavam pelas noites sem fim. Começava a acreditar que
talvez jamais voltaria a repousar seus olhos sobre aquele que um dia já fora
tudo para ela.
Em
mais um aniversário da partida de seu amado sob a tutela do misterioso Augusto,
Florencia resolveu dar fim ao seu sofrimento. Um copo de veneno preparado para
encerrar uma noite de tangos, seus últimos tangos, seu último bailar com tantos
falsos Carlos que pudesse encontrar. O Bulles Rouges já não estava mais em seu
auge, assim como sua outrora principal bailarina, mas as tábuas de seu chão foram
testemunhas dos passos mais apaixonados de Florencia Gatti.
Em todos os seus pares
ela via somente a jovialidade de Carlos, seu amante que a abandonara na fumaça
de um cigarro e com promessas vazias de regresso. Foram um, dois, três, vários
tangos renomados e desconhecidos dançados por Florencia, naquela que seria a
última apresentação de sua vida. Após o último passe, da última dança com seu
último falso amor, Florencia sentou-se em sua mesa, onde repousava o copo com
seu destino fatal. Olhara uma última vez para a porta da boate, na esperança
que a silhueta de um homem surgisse em meio à luz, mas nenhuma alma viva
adentrou ou fez a intenção de fazê-lo. Tomou o copo em suas mãos e
envenenou-se, aguardando a morte.
Na mesa ao lado, uma
pequena risada de zombaria. Um senhor muito bem vestido em um terno branco,
gravata vermelha e um chapéu da mesma cor que o paletó. Levantou-se e pôs-se
diante da velha argentina, estendendo-lhe a mão para uma dança, um tango de
Gardel que se iniciava.
— Eu prometi buscá-la.
— Ele falou.
— Carlos? Meu Carlos? —
Os olhos dela se encheram de lágrimas, e ela levantou-se para repousar nos
braços de seu amado, durante o tango mais lindo de sua vida.
No paletó dele, um
frasco de cor escura, similar ao veneno do copo de Florencia. Ilusão ou
realidade, a verdade é que os céus foram o repouso do casal naquela noite e nas
noites vindouras. Os céus e o amor.

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