Memórias da Estação - Jesus menino



Cheguei à estação, e desta vez a plataforma estava em festa. Era dia de missa em honra a santa protetora, tudo havia sido programado para que o trem chegasse assim que o nosso bom padre desse a bênção final. Eu estava com meu melhor terno mas sem o chapéu que me é costumeiro, estava em minhas mãos, era de bom grado respeitar a santa, mesmo que a missa não estivesse sendo na igreja.
Ritos, músicas, orações... Tudo seguia como devia ser, exceto a pequena figura daquela menininha entretida em seu mundo de descobertas no colo da mãe. Era uma figura pura, sorridente, com olhos de quem caça borboletas. Exibia, sem vergonha alguma, seus poucos dentes de leite, acenava para todos e dava gargalhadas maravilhosas quando encontrava com o olhar algo que lhe despertasse o interesse.
Contudo, nas feições de muitos, pude perceber certo descontentamento com os modos infantis da criança. Não sei se seria reprovação ou inveja, e olha que este último é pecado. O que queriam aquelas caras duras? Que a menina se portasse com a mesma rigidez? Mas essa é a maravilha da primeira infância, cara feia pra ela não era fome ou bicho-papão, apenas mais um motivo para deliciosas gargalhadas.
Fiquei imaginando que, talvez lá no céu, quando Deus celebrasse suas missas, os anjinhos fossem todos desta forma, sorridentes e satisfeitos, curiosos, sem desrespeito com o Criador, muito pelo contrário, respeitosos ao enxergar o mundo com as cores que ele verdadeiramente possui, as da felicidade e da simplicidade. Até por que, Jesus já foi menino, e ai daquele que acha que Nosso Senhor, em sua fase infantil, não aprontou das suas, ainda mais sabendo fazer milagres! Se ele veio ao mundo para viver como os homens, ele bem certamente  se permitiu viver as belezas da infância.
Bem, fazendo contraponto aos olhares que fitavam a menina, cheguei próximo a ela e lhe entreguei o meu chapéu. Como se me conhecesse há anos, ela sorriu para mim, pegou o regalo que lhe dei e, curiosa, colocou sobre a cabeça, praticamente escondendo seu rosto. Sua gargalhada ecoou pela estação e dentro do meu coração.
O trem chegou, ganhando as bênçãos do padre e dando fim ao rito. Na despedida, ganhei um leve aceno da mocinha que havia se escondido no meu chapéu. Voltei para casa, ávido por contar as cousas para Tia Inês, não sobre a pessoa que não veio, mas sobre as coisas que aprendi, que fé são as iniciais de felicidade.

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