Um personagem na sala


               


Mauro encerrava seu mais recente texto com o último ponto final, e como de costume, foi preparar seu “café da vitória”, um café com chocolate e pimenta que ele preparava para si, a fim de celebrar a criação de mais uma história, que segundo seu agente, seria mais um sucesso.
            A campainha então tocou, algo incomum para o horário e para o prédio onde ele morava. Seria o vizinho de baixo reclamando de algum vazamento novamente?Pensou. Resolveu não atender, não estragaria toda a sua satisfação com alguma goteira inconveniente, mas o visitante insistiu e Mauro não teve outra alternativa, senão, atender.
            Ao abrir a porta, uma figura de uma magreza atlética, cabelos castanhos e um ar preocupado, surgiu à sua frente. Não era o vizinho, mas alguém cuja fisionomia não lhe era estranha.
            — Pois não? — o escritor disse ao homem de trinta e poucos anos.
            — Não ta lembrado de mim, né? — perguntou.
            — Acho que não. — respondeu após observar o visitante à porta por alguns segundos.
            — Fabrício Santos. — se apresentou.
            Mauro olhou com cara de espanto e com uma ruga de dúvida na testa.
            — Fabrício Santos? Sério?
            — Sério! — respondeu friamente.
            — Que coincidência, acabei de escrever uma história onde o personagem principal se chama Fabrício Santos. — Disse com um sorriso, achando engraçado aquela coincidência.
            — Pois sou o próprio.
            Mauro soltou uma gargalhada diante do comentário do tal Fabrício, adorando o senso de humor do visitante. Lágrimas chegaram a escorrer de seu rosto vermelho, devido ao riso que lhe roubara o ar. Após um suspiro, onde ele recuperou um pouco da respiração, virou-se sobre o ombro do homem à sua porta e gritou:
            — César! Maria Augusta! Podem sair de onde vocês estiverem! Adorei a brincadeira. Sério! Muito bom mesmo, o rapaz é quase idêntico ao Fabrício, exceto pela cicatriz na mão esquerda.
            — Você me deu essa cicatriz quando eu fui tentar salvar Mariana.
            — Ei! Como você sabe deste spolier? A página com essa passagem foi enviada hoje para a editora, aliás, enviada agora. Você não poderia saber disso!
            — E você não poderia ter matado a minha mãe. — retrucou Fabrício.
Os olhos de Mauro se arregalaram e ele não acreditou no que acabara de ouvir.
— Nããão! — disse — Como você sabe que dona Maria Eugênia morre no incêndio?
— Como eu sei?  — respondeu com olhos despistadamente marejados — Cara, você me fez chegar na frente da casa dela, bem na hora que o botijão de gás explodiu. Você me fez assistir tudo, desesperado, gritando o nome dela.
— Como o César teve coragem de revelar esses fatos para um ator? — disse Mauro para si mesmo, nitidamente furioso com os detalhes de sua história que pareciam ter sido deliberadamente liberados.
— Coragem? Como você teve coragem de matar a minha mãe, me fazer assistir, descobrir que o autor da bomba e grande vilão era o meu irmão mais novo, aquele que, graças a você, era o que eu mais amava, mais confiava. Como você teve coragem de fazer com que Mariana se envolvesse com ele, que ela me largasse no altar por conta de falsas promessas feitas por Armando à ela. Como você teve coragem de me fazer ir contra o meu irmão, a minha família, enfrentar todas as adversidades para provar o verdadeiro caráter de Armando, para depois, nas últimas linhas ele comprar o juiz e fugir com uma fortuna para a Europa?
Mauro se mostrou surpreso com todas aquelas informações, mas voltou a se mostrar furioso ao entender que, ao que tudo indicava, aquele homem sabia de tudo o que acontecia na história e vida de seu personagem principal.
— Olha meu amigo, — disse — eu não sei quem você é, de onde você veio ou como você teve acesso a todas essas informações, mas avise ao César, à Maria Augusta, ao escambau, que eu vou processar a Letra Certa e qualquer outra editora que fizer essa brincadeira de mal gosto, essa falta de profissionalismo, revelando uma história que eu tive todo o carinho e dedicação ao desenvolver.
— Carinho e dedicação? Carinho e dedicação? Arruinar a vida de uma pessoa, a isso que você intitula “carinho e dedicação”? Você matou meu cachorro quando eu tinha sete anos.
— Eu não matei o seu cachorro! Armando matou, por inveja de você! — Mauro interrompeu sua própria linha de raciocínio, balançou a cabeça negativamente e voltou a continuou — O que eu estou falando, você não é Fabrício Santos, seu irmão não é Armando Santos, sua mãe não morreu em uma explosão planejada maquiavelicamente pelo seu irmão e seu pai....
— O que tem meu pai? — Fabrício se mostrou receoso ao falar sobre seu pai.
— Se você é quem você diz ser, você sabe o que aconteceu com seu pai, e isso não está no livro, está aqui, na minha cabeça, pronto para ser uma reviravolta no próximo volume da série. — Mauro apontava com o dedo indicador para sua fronte esquerda.
— Meu pai é um dos maiores bandidos do país, abandonou minha família quando eu tinha 9 anos, mamãe pensava que ele estava morto, mas eu sei que ele vive em São Paulo, de onde comanda um negócio sujo de corrupção, trafico e prostituição.
Mauro estremeceu, ninguém sabia daquilo, apenas ele e o personagem principal de sua história, o tal Fabrício Santos. O escritor, então, deu alguns passos para trás, até cair sentado no seu sofá bege. Ele arquitetara minuciosamente em sua mente o segredo que só a estrela de sua saga saberia, que iria atrair o público aos milhares para desvendar cada linha do passado e presente da relação de Fabrício Santos e seu pai. E agora, um homem que dizia ser Fabrício e que sabia todos os segredos do personagem, estava ali, à sua porta.
— Sério Mauro, você me odeia tanto assim? — o personagem questionou o autor, enquanto entrava pela sala, em direção ao sofá.
— Eu, eu... eu não odeio você, pelo contrário, você é um personagem forte, marcante, determinado. — respondeu, em meio a algumas gaguejadas.
— Forte? Sério? Você sabe como foi difícil pra mim essas quatrocentas e trinta e duas páginas? Perdi meu cachorro, minha mãe foi morta pelo meu irmão, minha namorada se envolveu com ele em uma página muito bem detalhada de uma noite de sexo, e para completar, eu sabia que meu pai era vivo e um ser perverso. E os momentos em que eu derramei lágrimas? Lágrimas que você não narrou e nem sequer fez questão de tomar conhecimento.
— O que você está falando? Você não chorou à noite, não te imaginei assim. — Mauro protestou.
— E o que você sabe sobre mim? Onde você estava enquanto eu testemunhava letras e mais letras contando sobre os carinhos de Armando em Mariana, ou quando eu presenciava parágrafos e mais parágrafos detalhando o plano de meu amado irmão para matar minha mãe? Pois bem, eu derramei lágrimas e mais lágrimas, sim, no escuro das páginas, nos rodapés, nos cabeçalhos, no verso, em cada linha em que eu me escondia, em que meu nome não era citado. Mas eu acreditei, eu acreditei que no final, na última linha, no último ponto, o sol brilharia e minha vitória chegaria, acreditei que valeria a pena cada adversidade, que eu, sendo o mocinho, o bom, o herói, eu teria minha recompensa, e aí o que você faz? Deixa meu irmão escapar impune!
— Mas ele perdeu tudo, ele não te venceu, não ficou com Mariana! E o público...
— O público, sim, sempre o público. Fulano não vai gostar desse final, beltrano prefere um estilo mais noir, ou vamos retratar a realidade. Não! O mocinho tem que vencer, ele tem que mostrar e ver que sua jornada valeu a pena, que cada desafio foi encarado para que o vilão tivesse seu final, um final justo, onde o antagonista deve pagar pelos seu crimes, e não se “dar mal” em uma mansão em Paris, com cinqüenta empregados e muito dinheiro no bolso.
— Você não entende de mercado literário, se eu não escrever assim, nenhuma editora me publica, ninguém me compra!
— E o que te importa mais, escrever o que você gosta, o que você sente, o que você tem vontade, ou apenas entregar seus personagens às vontades do mercado editorial. Eu tenho sentimentos, Mariana tem sentimentos, minha mãe tinha sentimentos, quem sabe até mesmo Armando os tenha também. — Fabrício puxou uma cadeira e se sentou bem de frente para Mauro, olhando no fundo dos olhos de seu criador. — Eu quero ver o vilão se dar mal, se lascar mesmo! Ao menos no final, eu quero ver ele na merda, eu quero que ele pague cada lágrima que ele arrancou, cada maldade que ele cometeu. O bem vence o mal, lembra? Não quero saber desse trem de tons de cinza, eu quero é preto no branco. Eu quero que o leitor olhe pra mim no anoitecer da última página e pense: o cara sofreu, não deixou de ser quem era e no final, valeu a pena.
— Isso não vende, eu vou morrer na miséria. — Mauro colocou as mãos no rosto, baixou a cabeça e a balançou negativamente.
— O livro pode até não vender, mas não venda também sua alma, sua criatividade! Lembra quando você me imaginou a primeira vez? Lembra como seria a história? Armando nem mesmo seria meu irmão, mas a editora queria um caso de família; Mariana se casaria virgem, mas a editora sugeriu um adultério; Minha mãe entraria ao meu lado, na igreja, no dia do meu casamento, mas a editora preferiu um velório; e meu pai, hein? Lembra? Meu pai seria meu herói, seria nele que eu me espelharia, mas a editora preferiu um menino órfão e você resolveu martirizar ainda mais minha vida, fazendo dele um bandido.
— O que você quer que eu faça, que eu salve o seu cachorro? Eu não posso, O Álamo vai ser um grande sucesso, vai vender milhões de exemplares, você vai ser famoso!
— Eu não quero ser famoso, eu quero ser feliz!
— Mas você é feliz... pelo menos no final do livro, quando está se casando.
— Com uma mulher grávida de uma criança que, segundo seus planos para o próximo livro, é filha do meu irmão.
— Eu só posso estar ficando louco. — Mauro coçou a cabeça — Não pode ser real, você não pode estar aqui.
— Pois estou. Em carne, osso, pingos nos is, sujeito, advérbio e predicados. — Fabrício se levantou — E quer saber de uma coisa Mauro, se você quer que eu seja uma lição de vida para seus leitores, então que eu seja uma lição de vida para você primeiro. Eu tive a coragem de vir aqui lutar por páginas mais felizes em minha vida.
— Eu não vou vender nenhum livro se mudar a história.
— Você não vai mudar o mundo se vender o seu caráter.
Mauro olhou incrédulo.
— Você é bem melhor com as palavras do que eu imaginei.
— Vivo dentro de um livro, o que poderia tornar um homem melhor com as palavras do que isso?
Mauro se levantou, calado. Se dirigiu até o balcão da cozinha, de onde tirou uma garrafa de vinho. Encheu a primeira taça, e quando foi encher a segunda, destinada a seu convidado, ouviu:
— Para mim não, obrigado. Pode manchar minha página.
— E o seu final pode manchar minha reputação como escritor.
Fabrício sorriu, balançou a cabeça negativamente, se levantou e se dirigiu até a porta da sala, a mesma por onde entrara no apartamento.
— Lembra quando você escreveu seu primeiro livro. — Perguntou, ainda de costas para o autor.
— Memórias do Alvorecer? — Questionou.
— Não. O primeiro. Lá no jardim de infância. O Crocodilo Herói.
Mauro ficou calado e espantado. O personagem havia sido criado em seus tempos pueris, ainda na escola.
— Pois bem. Ele enfrentava o Panda Maluco, mas sempre vencia. E sabe por que? Por que você sempre acreditou em finais felizes. O que te fez duvidar das coisas boas?
— O mundo é um ligar cruel. — Respondeu secamente.
— E continuará sendo, se não inspirarmos pessoas. Você quem decide Mauro. Agora, deixe-me ir, vou adotar um um outro cãozinho, estou pensando em...
— Átila... — Mauro completou involuntariamente.
— Isso, Átila para o nome.  Até breve. — E o personagem sumiu no corredor.
Mauro ficou parado, pensativo. Se beliscou para ver se não sonhava. 
Sentou-se na frente do computador, abriu o original de sua obra e acessou um parágrafo, se pondo a digitar: "Arnaldo, o irmão adotivo..."

Foto: Freepik

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